«Mares calmos não fazem bons marinheiros»

Crónica do Encontro de Escritores do éMundial 2012. Este ano 2012, as sócias e simpatizantes da AGAL queríamos que a celebração do éMundial 2012 em Vigo fosse uma oportunidade de...

Crónica do Encontro de Escritores do éMundial 2012.

Este ano 2012, as sócias e simpatizantes da AGAL queríamos que a celebração do éMundial 2012 em Vigo fosse uma oportunidade de tirar à luz toda uma jeira de inquietações e projetos em que levávamos tempo a trabalhar desde a diversidade, o respeito e o entusiasmo, partilhar a arte de tantas e tantos amigas e amigos que se ofereceram para colaborar. Além disso, estávamos interessados em mostrar as possibilidades que a nossa língua, o galego, nos proporcionara para comunicar com gentes que partilham connosco uma cultura comum e um jeito de ver o mundo e de o enfrentar.

Desta maneira, pois, pensamos em nos achegar a realidades afastadas às vezes no espaço, mas muito próximas a nós, e mais ainda nesta cidade, berço de Valentim Paz Andrade, que foi e ainda é chamada “porta do Atlântico”. Já o Daniel Castelão assinalava no seu Sempre em Galiza que os galegos tínhamos a chave para entrar no mundo da lusofonia e que essa chave era o idioma galego. Em Portugal, Brasil, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné Bissau, Timor Leste e mesmo a Goa indiana e o Macau chinês. Temos comprovado já avondo como com o nosso galego podemos comunicar-nos sem problema nenhum com cidadãos da América, Europa, África, Ásia e até a Oceânia. E que, na sua forma ortográfica portuguesa é língua oficial em organismos internacionais como a ONU, OUA, OEA, UE e Unesco.

Com esta teima na cabeça é que pusemos todas as nossas forças na apresentação do éMundial 2012, que quer ser o começo duma destemida viagem a que aguardamos todas vós podades / queirades enrolar-vos.

O ENCONTRO DE ESCRITORES DA GALEGUIA

«Galeguia» é um termo de consenso que lembra as origens dum idioma oficial em quatro continentes. Perante as divergências entre os portugueses e os brasileiros polo novo acordo ortográfico da língua, no VIII congresso da Associação Internacional de Lusitanistas, celebrado em 25 de julho do ano 2005 em Santiago de Compostela, o escritor brasileiro Luís Ruffato propôs o termo Galeguia como alternativo a Lusofonia. O escritor valorava assim que o termo da sua invenção lembrava muito melhor as verdadeiras origens da língua. Outros assistentes ao devandito encontro, entre eles alguns portugueses e galegos, assumiram com entusiasmo a ideia de Ruffato.

Os escritores Adriana Lisboa do Brasil, Ondjaki de Angola, Luís Cardoso de Timor, José Luís Peixoto e Possidónio Cachapa de Portugal, e Quico Cadaval e Carlos Quiroga da Galiza foram os primeiros a defender o uso do termo «Galeguia» em lugar de «Lusofonia» para designar a língua comum.

Correspondeu a Ruffato a formulação do conceito por entender «que devolve o sentido original da raiz da nossa língua, relativiza o peso do passado colonial e reincorpora, com os devidos créditos, a Galiza a este universo comum». Nesse mesmo sentido, o angolano Pepetela, na visita que realizou há uns anos à Galiza por ter sido proclamado «Escritor Galego Universal» pola Associação de Escritores em Língua Galega, também viu o termo como «adequado» pois, segundo o seu depoimento, «para além de não ser um decalco do francês ‘Francofonia’, representa uma volta às origens da língua» à par de ser «um termo não marcado, muito bem aceite pelas ex-colónias portuguesas». Sem entrar em polémicas estéreis, muitos de nós empregamos este termo como sinónimo de lusofonia, com a vantagem de incluir a Galiza.

A GÉNESE: É TANTO O QUE NOS UNE

Dizia Pessoa “Navegar é preciso, viver não é preciso”. É esta a principal entre as razões que nos decidiram a começar esta travessia, porque precisamos de navegar, sentir o sal nas nossas faces, a galerna que zoa entre nós e o infinito. É por isso que resolvemos deixar a um lado os nossos costumes, os nossos pequenos hábitos quotidianos, os assuntos urgentes… e sair ao mar aberto, com os perigos que isto envolve, pois como diz Eugénio de Andrade no seu poema As gaivotas:

As gaivotas. Vão e vêm.
Entram pela pupila.
Devagar, também os barcos entram.
Por fim, o mar.
Não tardará a fadiga da alma.
De tanto olhar,
tanto olhar.

Nós, varinas e marujos da AGAL, realizámos a nossa festa de inauguração num evento em que participaram amigas e amigos de ambas as margens do Atlântico. A nossa proa, promover o conhecimento mútuo entre a Galiza e o resto de países da lusofonia ou galeguia, abriu-se passo entre as águas duma tradição, história e a língua comuns.

Mudamos um bocado a direção do nosso navio por causa das tempestades que sopravam desde a Câmara Municipal, talvez devidas a alguma flatulência do “senhor” Presidente da Câmara. Mas, felizmente, a rosa-dos-ventos da generosidade, da paciência, do trabalho bem feito e do entusiasmo levaram-nos a bom porto, já que o tempo que precisamos para arranjar os cabos da embarcação e soltar as amarras, serviu para um intenso convívio entre as/os escritoras/es e o público assistente. Como nas ruas desta cidade banhada pelo mar, os sons da nossa fala nas suas diversas cores e sotaques soaram como uma suave brisa que convidava a deixar-se levar pelo tremer das velas, pela maré de encantos em que, como canta o João Afonso, “tudo é azul/ sem fronteiras a dividir corações”.
Nesta ocasião, a tripulação formada por o multifacetado Xurxo Souto, mestre-de-cerimónias que inaugurou o éMundial 2012, Ondjaki (Angola), Fernanda Angius (Portugal), Amílcar Bettega (Brasil), Carlos Quiroga, Séchu Sende, Maria Lado, Carlos Taibo, Iolanda Gomis, Ledicia Costas e Raquel Miragaia (Galiza). Escritores que participam noutras atividades artísticas e/ou profissionais e que nos falaram sobre as cores, sons e sabores das literaturas escritas nas margens, sobre as crises e as oportunidades, sobre a relação entre as artes e o mundo contemporâneo… encetaram uma agradável conversa em que as vozes e a expressão foram embaladas pelas ondas do mar de Vigo que se enxergavam do terraço do hotel Bahia: momentos de emoção, de silêncio cúmplice, de gesto intenso, de lutas inadiáveis.

Do luminoso verdor do rio passamos ao fascinante pôr-do-sol no mar e deixámos porto, como uma espécie de Diretório Revolucionário Ibérico de Libertação como aquela organização formada por galegos e portugueses exilados para lutar contra as ditaduras de Salazar e Franco, que entre o dia 22 de janeiro e o dia 4 de fevereiro de 1961 sequestraram o transatlântico português Santa Maria, que fazia a rota Caracas-Lisboa-Vigo, com 568 passageiros a bordo, com o propósito de chamar a atenção mundial sobre a situação que se vivia em Portugal e Espanha, rebatizado o paquete como Santa Liberdade. Após conversas com o governo Brasileiro, os membros do DRIL depuseram armas e conduziram o navio a Recife, sendo reconhecidos como refugiados políticos. O galego José Velo foi cossecretário geral junto ao português Humberto Delgado. Ao chegarem, Velo assenta-se com o seu filho Vítor na cidade de São Paulo, onde funda a livraria Nós em 1962 e em 1966 a Editora Nós, que foi a primeira em publicar no Brasil uma antologia de Rosália de Castro. Em 1971 fundou a revista mensal Paraíso 7 dias.

O coirmão de José Velo, Carlos, figura mítica do cinema galego e, após a Guerra Civil, emigrado no México durante décadas, escreve em 1968, no derradeiro número da revista Vieiros um texto intitulado “Imaxes para unha película”, uns apontamentos recolhidos por um cosmonauta brasileiro chamado Comandante Guevara, no ano 2368. As notas parecem feitas por um cineasta primitivo, nos tempos em que se gravavam imagens e vozes em fitas de celulose, conservando-se numa ola de barro preto, originário da Atlântida galego-portuguesa.

Rumo a essa Atlântida continuou a nossa passagem, e no caminho aportamos em cais nos quatro cantos do mundo: Vigo, Luanda, Cee, Niterói, Viseu, Tardade, Corunha, Lisboa, Santiago de Compostela… A saudade que encheu as nossas velas não foi triste, no entanto pareceu uma mistura ativa e sem preconceitos de risos, de baile, de esperança, de vozes e canções que voam por cima das alfândegas.

E começamos a circum-navegar a “saudade”, palavra comum a portugueses, brasileiros e galegos, igual que a cultura partilhada e levada ao Novo Mundo polos navegantes portugueses. Saudade, só conhecida em galego-português, descreve a mistura dos sentimentos de perda, distância e amor. A palavra vem do latim solitas, solitatis (solidão) na forma arcaica de “soedade, soidade e suidade” e sob influência de “saúde” e “saudar”. Esta palavra comum a portugueses, brasileiros, africanos e galegos, igual que a cultura partilhada e levada ao Novo Mundo polos navegantes lusos, é uma das mais presentes na poesia e também na música popular. Define a melancolia causada pela lembrança; a mágoa que se sente pela ausência ou desaparecimento de pessoas, cousas, estados ou ações.

Em Portugal, o fado, oriundo do latim fatum, destino, está diretamente associado com este sentimento. Do mesmo modo, a sodade cabo-verdiana está intimamente ligada ao género musical da morna. No Brasil, esse sentimento está muito retratado no samba de fossa e na bossa nova. Na Galiza, além do termo saudade, existe o termo soedade, e soidade, muito comum na obra de Rosalia de Castro; e a nossa morrinha, associada sobretudo ao afastamento do país pelos emigrantes.

Canté(*), como dizia o Camilo Nogueira, que um dia houvesse tantas pontes sobre o Minho como em Paris sobre o Sena, ou como dizia o poeta minhoto João Verde e descobri um dia nuns azulejos na beira deste mesmo rio:

Vendo-os assim tão pertinho,
A Galiza e mailo Minho,
São como dois namorados
Que o rio traz separados
Quási desde o nascimento.
Deixá-los, pois, namorar,
Já que os pais para casar
Lhes não dão consentimento.

É tanto o que nos une: canções como “Grândola, vila morena” interpretada pola primeira vez em público no dia 10 de maio de 1972 na Galiza, na cidade de Compostela, num concerto dificilmente esquecível para os que ali estiveram e a homenagem que neste 10 de maio de 2012, 40 anos depois, galegas e galegos, e muitas e muitos portugueses, brasileiros, angolanos… tributámos no Auditório da Galiza; canções populares como A Carolina, As Sete Mulheres do Minho, O Verde-gaio, O Sacristão de Coimbra… Lendas como a do lobisomem, viva hoje em dia além de na Galiza, no Brasil e Portugal; o mito das feiticeiras engaioladoras que vivem no rio Minho, entre Arvo e Melgaço, que tentam seduzir quem quer passar a nado dum a outro país; o da desmemória que afetava os que atravessavam o rio Límia, Lima ou Letes, que tantos desgostos deu às tropas imperiais romanas na sua conquista da Gallaecia, já que tinham medo de esquecer para sempre o próprio nome, de onde vinham e aonde queriam ir. Para lutar contra a barbárie contemporânea decidimos ser “Soldados da memória” como na Palestina, outro país e outro povo que vive nas margens, e de que maneira!

O caminho de Santiago, tão querido polos brasileiros, é o tema dum dos romances de mais sucesso de Paulo Coelho, e também aparece no Cruzeiro do Senhor do Galo da cidade de Barcelos, no norte de Portugal, em memória daquele peregrino galego, romeiro a Compostela, vítima da acusação de roubo por parte dum taberneiro: É tão certo ― disse o galego ao juiz ― eu estar inocente como esse galo assado que o senhor se dispõe a comer se ponha a cantar. Muito não acreditaram naquele “tolo”, mas ninguém ousou tocar o galo. Quando o coitado do galego foi enforcado, o galo ergueu-se do prato, cantou e, quando todos davam o peregrino por morto, descobriram que um nó mal feito o salvara e este, em agradecimento, levantou o famoso cruzeiro que ainda hoje pode contemplar-se.

Que dizer da República Independente do Couto Misto, terra ceiva onde se podia ser galego, português, ter as duas nacionalidades ou nenhuma e onde ainda conservam a arca com as três chaves em que guardam as suas leis e os seus segredos…

Como não falar de personagens históricas de origem galega e funda pegada na história e cultura lusófona como Inês de Castro, Pedro Madruga, Camões, mesmo o mesmíssimo Pessoa… ou míticas como as mouras encantadas, as sereias, os tesouros agochados no arco-da-velha, nas mamoas…e também personagens reais e atuais como Carlinhos Brown, que conta que o primeiro trabalho que teve foi numa padaria na Bahia, regida por galegos, “galego nos engorda, galego nos enterra” ouvia-se pelas ruas aludindo às duas profissões mais comuns dos emigrantes do nosso país: padeiros e coveiros… ou a da galego-brasileira Nélida Piñón, primeira mulher presidenta da Academia Brasileira das Letras e autora do romance A República dos sonhos sobre a odisseia dos seus antepassados a emigrar ao Brasil, que nas suas aparições na televisão ou na imprensa e na sua obra, fala habitualmente, e não sem orgulho, do seu pequeno país de origem.

Causam assombro as semelhanças entre o Manifesto modernista no Brasil do 1922 e o galego de Nós, do 20. Um membro daquela geração, Guilherme de Almeida, visitou Galiza no ano 33 e publicou mesmo um artigo na revista Nós “Galliza, pátria da Canção”.

Para rematar ― poderíamos continuar ―, é surpreendente como ainda hoje no Nordeste do Brasil ― a primeira região em ser colonizada ― conservam-se vivas palavras tão “galegas” como vaga-lume, em riba, arco-da-velha, pôr-do-sol, sanfona, demo, picheleiro… e costumes como a literatura de cordel, semelhante à dos nossos cegos nas romarias ou os desafios de improvisadores repentistas como os das nossas regueifas.

DIÁRIO DE BORDO

Nos passados sábado e domingo a cidade de Vigo tornou-se uma nau de amizade, gratidão e carinho mútuo entre galegas e portuguesas, brasileiras, angolanas…

A primeira intervenção, a do genial Xurxo Souto, referiu-se a nós com indissimulável cumplicidade e agarimo. Entoamos o mítico “Berbês” enquanto o seu olhar espreitava o horizonte a aproximar e unir correntes. Parecia querer nos aconselhar “Mares calmos não fazem bons marinheiros”.

Estas mulheres e homens do mar conseguiram estes dias o seu objetivo: a fusão total entre as nossas almas numa comunhão que nunca antes tinha existido e que é possível pelo conhecimento e amizade mútuos. Mesmo os golfinhos, os peixes voadores e as sedutoras sereias bateram palmas e mexeram os seus corpos de escamas, fazendo próprio aquilo que disse Emma Goldman: “Se não posso dançar não é minha revolução”.

O pessoal já está a pedir mais e mais. Gostam de como somos, gostam da energia que estamos a transmitir. Galeg@s e gentes doutras partes do mundo queriam continuar a festa. Ninguém queria ir embora.

Foi uma honra para mim ser o encarregado de conduzir esta bem sucedida apresentação. Mas o leme foi partilhado por todas as amigas e amigos que acreditam/os neste projeto. A amurada do vosso amor é o nosso parapeito. O sonho deve continuar a navegar. Como dizia Saramago: ”Não tenhamos pressa, mas não percamos tempo”.

A NOSSA LÍNGUA É MUNDIAL!!!

Obrigado a todas pelo vosso apoio e até a próxima!

Xurxo F. Martins

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(*) Oxalá, Tomara